Medindo palavras

"Você me magoa. Sempre diz o que quer, como se não soubesse a dimensão que as palavras têm. Meça-as melhor." - foi o que ele lhe dissera antes de partir. Ela coçou o cabelo, colocou uma mecha atrás da orelha, deitou um pouco a cabeça... Fez essas coisas que fazia quando não entendia algo que aparentemente ela deveria entender por se tratar de algo simples.
A lagarta soprou a fumaça, tomou fôlego. O chapeleiro lhe trouxe uma nova xícara de café. Ali era seu país, seu mundo. Podia ser parecido com diversos outros países e mundos, mas ela não gostava de pensar nesses detalhes. Aquele era seu Lugar Nenhum. Mas mesmo assim ainda haviam coisas que ela não podia (ou não queria) entender.
Ela coçou a cabeça. "Meça suas palavras", ele dissera. E então tudo se tornou mais claro e fácil: ela pensou nas palavras, e todas elas ganharam vida a sua frente. Então a menina as mediu, uma a uma, e lhes deu atenção, e acalentou-as, contou suas letras, sílabas e significados... E sorriu. As palavras estavam medidas, e agora faziam parte dela.
Uma a uma, voltaram para sua cabeça. e o seu mundo se tornou muito mais acolhedor do que jamais fora. Era na verdade um lugar nenhum, mas também era um país de maravilhas, inteiro formado por palavras.

Saudade.

A chuva caía fina e o céu estava claro, mesmo sendo madrugada. Eu sabia que, uma hora ou outra, ela apareceria. Ela gosta de chuva, gosta de céu claro, gosta de madrugada. E ela gosta de mim. Bom, eu suponho que goste. Se não ela já teria ido embora.
Eu a irrito, a desprezo, ela às vezes ameaça me deixar, mas nunca se vai de verdade. Às vezes ela só espera a chuva fina de uma madrugada para aparecer. Ela chega sem avisar, sempre ao menor sinal de que talvez eu esteja sentindo sua falta. Eu nunca sei se estou mesmo sentindo sua falta. Ela reclama que eu torno tudo tão confuso... mas ela sempre volta.
E a rotina é sempre a mesma: ela vem sorrateira, como se eu não fosse perceber sua presença... e enche todo o quarto, enche toda a vida. Ela sobe na cama, se aninha ao meu lado, reclama que tenho sido sempre tão frio, que talvez no passado fosse melhor. Ela puxa a coberta e me provoca, fecha os olhos, sorri sabendo que meu corpo se arrepia com a brisa gelada que invade a casa pela janela. Ela sorri. E fica linda sorrindo. Então eu esqueço que deveria manda-la embora. Eu sempre me esqueço.
Perdido, admiro seu sorriso e então me lembro de fechar os olhos. Ela parece invadir minha mente, me pede para voltar. Puxo a coberta, a descubro, me afasto dela. Abro os olhos: ela ainda sorri, me provocando. Sua presença me tira o ar... Eu sufoco. Uma lágrima cai. Eu não a queria aqui.
Eu a empurro para mais longe de mim. Ela me aperta, me puxa, me machuca. Suas unhas sempre afiadas me arranham, me sangram, me matam todos os dias. Ela me morde. E a cada lágrima que cai de meus olhos, o sorriso dela fica maior. Ela se alimenta da minha dor. E ela dói.
Ela sorri. O sangue, as feridas, as memórias... Tudo se esvai de mim. Eu gostaria de resistir, gostaria de mandá-la embora para sempre. Eu sei que, se eu pedir, ela me ouvirá. Mas no fundo eu não quero que ela se vá. Ela foi tudo o que restou.

Chamada não atendida

Ela respirou fundo, limpou a lágrima teimosa que insistia em cair, e resolveu atender. O passo mais difícil era apertar o botão verde do celular e falar Alô. Todo o resto era fácil, como sempre fora.
Ela diria um "Alô" mais desanimado do que gostaria, e ele sentiria sua preocupação mesmo do outro lado da linha. E ela riria, sem graça, e diria que ele não precisava se preocupar, que eram só bobagens daquelas que só ela conseguiria inventar para viver. Ele diria que gostaria de vê-la, e que gostaria de animá-la com alguma conversa sem sentido, como se tivesse pressentido que algo estava fora do lugar. "Seu lugar é comigo", ele diria sem ela precisar perguntar, e ela se sentiria a pessoa mais especial do mundo. "Meu lugar é na madrugada", ela responderia, querendo completar que, mesmo assim, seria bom ter a companhia dele de vez em quando.
Mas depois pensaria no quanto tudo aquilo era errado, e no quanto as coisas entre os dois nunca aconteciam do jeito certo. Mas, pensando bem, existe mesmo um jeito certo para isso? Existe o certo e o errado pra gostar de alguém? Pra dizer que se preocupa? Porque ele sempre fora o cara errado, ela não tinha dúvidas. Mas permitiu que ela vivesse sentimentos tão exatos, que ela nunca seria capaz de rejeitar-lhe um pouco de afeto, mesmo no meio de uma madrugada triste, mesmo que todo o universo conspirasse contra isso. Eles sempre gostaram de ir contra o universo. Só assim puderam viver e amar tão intensamente.
Mas agora havia novas coisas e novas pessoas e novos relacionamentos a se considerar. Apertar o botão verde e falar "Alô" foi se tornando mais difícil, mesmo que todo o resto pudesse ser fácil da maneira que só ele seria capaz de ser.
Ela respirou fundo novamente e, se libertando dos pensamentos, pegou o celular para atendê-lo. Mas a tela apagou e o celular parou de tocar.

Coisas.

Cedo, caí da cama com o cobertor.
Calcei as calças e os calçados,
Coloquei creme nos cachos dos cabelos castanhos
Contornei as curvas do corpo com um corpete.
Corri no corredor, em casa, e quase comi o café. Que coisa!
Ah, comi o cigarro e o café. Que cabeça!
E que calor, que crise. Cadê o café?
Tem coca-cola, comida, cadeiras, chamadas,
Tem crase e tem computador,
Numa cadeia de corredores, corretores, compras, contas,
Conspirações e correrias. E que correria!
É coisa da crise esse carteiro carente, da carta contente e covarde
Que quase me convence a chorar
E me corrói o coração com casos de ciúme comoventes.
Que chato. Corro. Que calor.
Tem cigarro e café, com cinco comprimidos pra cabeça.
As coisas conspiram comigo, complicadas.
Que coisas? Cigarros, café, coisas colocadas em cima da cama.
O copo que cai no chão, quebra em cacos, é claro.
O coração que cai de cara, quebra em cacos, no caso.
Me comovo e choro. Credo.
Quero cartas, quero cigarros e copos de café.
Corro, com o coração caçado, comido.
Me calo. Que conspiração complicada.
‘Cabou o café.

É coisa da crise, é coisa do caos, é coisa de crer. Que coisa!

“SE NÃO ME FALHA A MEMÓRIA...”


  Quando minha avó materna começou a demonstrar os primeiros sintomas de Alzheimer, eu não imaginei que, ao longo do tempo, ela [re]viveria tantas histórias. Perdi meu bisavô paterno em 2010, devido à degeneração causada por essa mesma doença, aos 86 anos (embora ele dissesse que só tinha 75), depois de pouco mais de três anos de perdas graduais na memória e em outras funções psicológicas como percepção e atenção. No começo, era engraçado: ele contava histórias, inventava histórias, misturava histórias... Depois, contou, misturou e errou nomes... até esquecê-los. Com o tempo, parou de comer e de beber, achava que todos o estavam perseguindo, e aos poucos foi se fechando no Mundo de Memórias falhas que ele mesmo criou. Eu, como [quase] psicóloga, sempre achei que esse poderia ser o pior fim para uma pessoa: morrer pelo esquecimento, todos os dias, pouco a pouco. Morrer pela mente.
  Hoje eu sei que, conforme envelhecer, minha mente se definhará também. Justo eu, que tanto me gabo da boa memória que tenho...! Isso me entristece. Mas novas e velhas histórias surgiram, através dos devaneios da minha avó (que agora já está no segundo ano da doença e mesmo assim parece cada dia mais forte fisicamente) e por receber em casa a visita (talvez permanente) do meu avô paterno... e eu finalmente resolvi escrevê-las.
  Bem-vindos ao MUSEU DE MEMÓRIAS MORTAS, um lugar que desafia o tempo e o espaço, lugar onde presente passado e futuro se misturam e se distanciam a cada minuto, e se renovam, se repetem, se revivem, e se acabam... mesmo que talvez nem existam.

Um universo e um pouco da falta de sentido

Bem-vindo à um universo (criado por mim) um tanto quanto confuso e sem sentido: o meu. Embora eu realmente não goste desse fato, preenchi meu universo com inúmeros paradoxos e ambiguidades. Nem eu mesma consigo entender.
Há um conflito interno, até cômico, e eu quase poderia diagnosticar um desejo existindo ali. Ao mesmo tempo em que há o impulso para ir, para ser e fazer... há sempre uma dúvida, uma aparente racionalidade segurando as cordas antes do salto. E sempre há pulsão, Desejo.... e há também Delírio, Sonho, Desespero... Há tanto de Perpétuo em cada um de nós. E o ego, ah! o ego... é sempre o mais prejudicado nessa relação maluca entre Id e Superego, e talvez nunca consiga estabelecer um princípio de realidade.
Mas pelo menos eu não direi que falta Ordem. Pelo contrário. Até o Caos parece estar organizado... se isso for, de fato, possível. É uma questão de princípios. Tudo segue um padrão, uma ordem, e, quando tudo se desorganiza, apenas muda de lugar mas mantém uma lógica quase ordenada. Isso faz algum sentido?

As vezes a mão que segura a caneta perde a força e depois adormece. Alguns segundos depois, começa a dor, mas eu ainda me obrigo a escrever. Gosto de eternizar pensamentos em palavras escritas. [E as vezes a mão que arranha as costas dele perde a força, e depois adormece. Alguns segundos depois, me obrigo a sorrir, com os olhos marejados e o coração batendo rápido demais. Gosto de eternizar momentos em sentimentos bonitos.]

E as vezes (quase sempre) eu só quero dormir, com essa mesma mão - que dói, escreve, arranha e sente - em baixo do travesseiro, segurando o celular e acariciando, sonolentamente, meu anel de pedra da estrela.
Eu sempre gostei de estrelas. E hoje o céu estrelado está especialmente bonito... Ele sempre está bonito quando eu me sinto triste, como se a tristeza em si, mesmo triste, já não fosse bonita. [Eu gosto de pensar sobre a Tristeza. Também gosto de pensar sobre o céu.]
Um céu bonito e uma madrugada triste... E voltamos àqueles paradoxos de que falei no começo desse texto confuso: o meu universo, criado por mim, e que, aparentemente, não faz nenhum sentido.

E eu aqui, pensando na vida, no universo, pensando nele, procurando estrelas num céu noturno e molhado. A chuva cai e distorce tudo. E eu torço para que esse texto, de alguma forma, faça algum sentido.

Desajeitados.

    - Esse sou eu, desajeitado, te dando um abraço... Ah! acho que eu não tenho jeito com isso. Mesmo depois de tanto tempo, nunca sei como te encaixar nos meus braços. E você tem esses ossinhos aí nas costas, eles me incomodam.
    "Pare, já te falei que são os ganchinhos das asas". E eu ri baixo. Ri o riso leve que, sem esforço algum, ele conseguia tirar de mim. Puxei a franja que caía sobre os olhos e prendi o cabelo num coque frouxo. Eu queria poder acreditar que estava bonita, queria ter me preparado para a visita - mas ele era assim: inesperado. Vinha sempre sem avisar, e ainda assim chegava no momento certo. Mas eu já estava de pijama, com os olhos inchados de tanto chorar - e ainda mais chamativos e estranhos porque resolvi contorná-los de rosa. Mas essa sou eu, que mesmo odiando abraços jamais fugiria de um que viesse de você, pensei, numa risada sem graça.
    "É assim ó: levanta o braço esquerdo e passa por trás do meu pescoço. O direito você põe na minha cintura. Viu? Agora nossos corações estão próximos. Isso é um abraço."
    Ele me apertou contra seu corpo. Senti o seu perfume. Segurei o ar por alguns segundos.
    - Pra quem não gosta de abraços, você até que abraça muito bem, minha anjinha sem asas. - ele falou e riu. As asas coçaram nas costas, querendo se abrir, querendo voar, querendo existir... e eu pensei no quanto gostava desse cargo.
    Nossos olhos se encontraram e ficamos assim, brincando de fazer silêncio. Com ele, o silêncio nunca foi um problema. E falava tanto, tanto... Mas aí, como se todo o tempo tivesse parado e passado de uma vez só, me dei conta de onde e com quem estava. Pisquei algumas vezes, soltei os braços. Ele se afastou, receoso.
    "Desculpe. - eu disse - Eu gosto de você, menino. Quero vê-lo bem. Mas preciso ir".
    Ele sorriu: - Nós sempre precisamos ir.
    Ele virou as costas e se foi, sem se despedir, como sempre fazia. No primeiro muro que encontrou, ele abriu uma porta e entrou, como sempre fazia E eu tinha certeza de que ele também estava sorrindo. Não houve adeus, ou até logo. Mas eu sabia que em breve nos encontraríamos de novo. Abri as asas e fui para casa, deixando no caminho uma única lágrima de saudade. Ao olhar para trás, não a encontrei, mas posso jurar que agora se parece com uma estrela.

Uma rosa amarela...

   Nunca me interessei por aulas de biologia; lembro de acumular inúmeras faltas, de só me lembrar do conteúdo estudado durante as avaliações, e de esquecer tudo no minuto seguinte à prova. E lembro que eu nunca achei que essa matéria iria ser útil algum dia (até entrar na faculdade e descobrir que em Psicologia se estuda o cérebro e a genética). Mas, caso eu me interesse por algum biólogo (ou pelo jardineiro, sei lá), acho que é preciso explicar-lhe algumas coisas.
   De todas as flores conhecidas, as rosas são as mais comuns: mais utilizadas em casamentos, congratulações, para festejar a saúde e as conquistas, formaturas, e em várias outras datas "especiais". E definitivamente são as preferidas dos apaixonados, porque, como ocorre com inúmeros elementos e objetos (naturais ou não) com os quais o homem se relaciona, as rosas carregam um simbolismo especial. Assim, de acordo com cada cor, essa flor adquire novos significados e intenções.
   Rosas são flores, da família Rosaceae, e do reino Plantae. Tem espinhos, conhecidos como acúleos, e poucas folhas, singelas. Nascem isoladas, tem poucas pétalas (sete, geralmente), vários estames, um ovário inferior, e seus frutos são pequenos e comíveis (pesquisei no google, você sabe...). Simbolicamente, carregam inúmeras interpretações e mistérios.
    A rosa amarela, assim como tantas outras, foi criadas a partir de experiências genéticas, que permitiram não apenas novas cores, mas também um perfume mais intenso. Isso significa que, embora as rosas já existam há milhares de anos, essa rosa amarela (tão linda!) precisou ser criada e cultivada por alguém até chegar às nossas mãos.
   Diz-se que a rosa amarela simboliza a paixão, a afinidade e a fidelidade. Alguns dizem que ela indica a busca por confiança, mesmo levada pelo ciúme. Mas, especialmente, que significa AMOR, respeito, alegria, AMIZADE e desejo. O que, mesmo ajeitando direito, parece uma combinação um tanto quanto perigosa, e até maliciosa... mas, a meu ver, ideal.

    Quando dei aquela rosa, pensei estar contrariando as convenções que dizem que são os namorados apaixonados (ou arrependidos - como hoje, depois de algumas discussões) que dão flores para suas namoradas, e não o contrário. Aí me lembrei do quanto nós éramos um casal anormal, especialmente quanto a essa divisão de papeis, e achei completamente adequado. E, quando dei aquela rosa, pensei em quantos significados ela poderia adquirir.

   Eu sai de uma festa para poder entregá-la. Porque, apesar de tudo, você era o único lugar no qual eu gostaria de estar. "Lugar?" você vai se perguntar, e eu vou rir, toda boba, e dizer que você é, sim, o MEU lugar. E não teime comigo; você sabe que eu sempre tenho razão, e que sou teimosa o suficiente para insistir nisso.
   Pensei também no perfume intenso, que gruda na minha pele e me faz, depois de um abraço, lembrar de você o resto do dia. Ou do perfume que eu sinto na nuca, misturado ao arrepio da sua barba, que embala meu sono e meus sonhos em algumas noites. Ou o fato de ser uma rosa cultivada, assim como nosso amor é, dia após dia.
   E depois eu pensei que havia dado algo, mas que não havia explicado tudo o que isso significava. E os dias passaram até que eu achasse inspiração [e um momento pertinente, já que estávamos falando sobre comemoração] Então vou explicar: dar uma flor significa entregar com ela um pouco de sentimento. E, no meu caso, dar essa rosa significou dar um pouquinho de mim.
   Para finalizar, ou para "plantar" em NÓS um novo começo e infinitos sonhos e amanhãs, quero te dar, junto com a rosa, o meu AMOR, meu respeito, minhas alegrias, algumas conquistas, uma boa porção de AMIZADE (na qual eu incluo, sutilmente, a confiança e a afinidade, a completude) , e todo o meu desejo. Coisas que eu desejo a você, com amor, que espero que se concretizem, e que floresçam.

Deuses Americanos.

   Nenhum homem, proclamou Donne, é uma ilha, e ele estava errado. Se nós não fôssemos ilhas, estaríamos perdidos, afogados nas tragédias dos outros. Nós nos isolamos (uma palavra que significa, literalmente, lembre-se, ser transformado em ilha) da tragédia dos outros por nossa natureza de ilha, e pelo desenho e pela forma repetitiva das histórias. O desenho não muda: havia um ser humano que nasceu, cresceu e então, por causa de uma coisa ou de outra, morreu. Pronto. É possível preencher as lacunas com base em sua própria experiência. Tão sem originalidade como qualquer outro conto, tão único como qualquer outra vida. Vidas são flocos de neve, formando figuras que já vimos antes, tão parecidos uns com os outros quanto as ervilhas de uma vagem (e você já olhou para as ervilhas de uma vagem? Eu quero dizer, olhou mesmo para elas? Depois de um minuto de exame atento, não há chance de você confundir uma com a outra), mas, ainda assim, única.
   Sem indivíduos, enxergamos apenas números: mil mortos, cem mil mortos, "o número de vítimas pode chegar a um milhão". Com histórias individuais, as estatísticas se transformam em pessoas - mas até isso é mentira, porque as pessoas continuam a sofrer em números que, por si só, são entorpecentes e sem sentido. Olhe, veja a barriga inchada do menino e as moscas que andam no canto dos olhos dele. seus membros esqueléticos: vai ajudar se você souber seu nome, idade, sonhos e medos? Se enxergá-lo por dentro? E, se ajudar, será que não estaremos prestando um desserviço à irmã dele, que está ali ao lado, estirada na poeira abrasadora, uma caricatura distorcida e inchada de uma criança humana? E daí, se lamentarmos por essas duas crianças, será que elas agora passarão a ser mais importantes para nós do que as milhares de outras crianças atingidas pela mesma forme, milhares de outras vidas jovens e contorcidas que logo se transformarão em alimento para as moscas?
   Nós desenhamos nossos limites ao redor desses momentos de dor... continuamos em nossas ilhas, e eles não podem nos ferir. Ficam escondidos sob uma cobertura mascarada, suave e segura para que escorreguem, como as ervilhas, de nossas almas sem que sintamos dor verdadeira.
   A ficção nos permite deslizar para dentro dessas outras cabeças, para esses outros lugares, e olhar através de outros olhos. Então, no conto, paramos antes de morrer, ou morremos de forma indireta ou sem prejuízo, e, no mundo além do conto, viramos a página ou fechamos o livro e terminamos de viver nossa vida.
   Uma vida que, como qualquer outra, é diferente de todas.

GAIMAN, Neil. Deuses Americanos. 3.ed. São Paulo: Conrad Editora, 2011. p. 244-245.

2012: "E as vezes, quando sonhava, eu me lembrava de como voar".

Eu sentia profunda falta de alguma coisa que não sabia o que era. Sabia só que doía, doía. Sem remédio. [...] "Existe sempre alguma coisa ausente que me atormenta" (Camilie Claudel a Rodín, 1886). [...] Do que não escrevi, mas vivi e vivo e viverei. [...] Para o seu próprio bem, guarde este recado: alguma coisa sempre falta. Guarde sem dor, embora doa, e em segredo (Caio Fernando Abreu. O Estado de S. Paulo, 3/4/1994).
  Os anos de número par geralmente não são bons, foi o que eu expliquei para ele, dizendo o quanto esse ano poderia ser frustrante. E assim os dias passaram e o ano foi se tornando mais lento, e cansativo. Por que as coisas simplesmente não podiam se manter em "ordem"? E, de alguma forma que eu ainda não aprendi a explicar, nada mais parecia seguir aquela velha lógica; tudo parecia fora do lugar, e algo ainda faltava. Algo sempre falta. E, dia após dia, algumas coisas foram incomodando ainda mais.
  Meu pai sempre diz que, quando você conhece o que há de melhor, não há mais motivos para querer algo menor do que isso. Nós sempre buscamos (ou ao menos deveríamos buscar) a EXCELÊNCIA.
  Foi um ano de muitos planos e muitas mudanças. Talvez eu só estivesse procurando, de novo, um lugar pra me encaixar, já que eu sabia (ou achava que sabia) que, de alguma forma, meus antigos caminhos precisavam ser deixados para trás. Era hora de mudar.

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